#algarve2020 || EM DESTAQUE || MAIO 2022

Os números oficiais apontam para mais de 1400, mas quem está no terreno acredita que há duplicação de contactos devido à mobilidade  de um concelho para outro. Serão por isso bem menos as pessoas em situação de sem-abrigo, no Algarve. Referenciadas, na prática, estão cerca de 600. As respostas sociais são várias e muitas vezes rejeitadas pelos próprios indivíduos a quem se destinam. Para minimizar a desconfiança de quem vive na rua, cinco entidades uniram esforços e numa estratégia conjunta desenharam o projeto Legos. Com um gestor de caso a acompanhar personalizadamente quem vive na rua, é no Algarve que se regista  a maior taxa de reintegração do país.

Alcoólico crónico há mais de vinte anos, a viver na rua praticamente todo esse tempo,” Manuel”  era o que se designa por “bicho do mato”. Intratável, agressivo, solitário, rejeitava todo o tipo de ajuda, com exceção de comida, quando a fome apertava. “Nunca precisava de nada. Não queria conversa, sequer”, lembra  Fábio Simão, presidente do MAPS – Movimento de Apoio à Problemática Social, uma das cinco entidades que integra o Projeto Legos. A iniciativa, financiada por fundos europeus do CRESC Algarve (FSE), está a implementar no terreno o conceito de “gestor de caso” para pessoas em situação de sem abrigo. Uma resposta que faltava para complementar o esforço regional nesta área.

Fábio Simão pega no exemplo de “Manuel” para explicar a diferença:“ todos os dias o gestor deste caso ia à procura dele para lhe dizer bom dia e perguntar como estava. Todos os dias era recebido com palavrões e rejeição”. A situação repetiu-se vezes sem conta. “Até que um dia, em vez de um palavrão, o técnico ouviu de volta um “bom dia”, conta .

Aos poucos, e coincidindo com alguns problemas de saúde do homem em situação de sem abrigo, a resistência à ajuda esbateu-se e a mão que lhe tinha sido estendida foi agarrada. “Neste momento já não está na rua, não ingere uma gota de álcool, conseguimos arranjar-lhe uma prótese dentária e voltou a sorrir. Continua a ser uma pessoa difícil, mas já se consegue falar com ele. Aliás, tornou-se até muito prestável e disponível.”, explica.

Um gestor para cada caso

A figura do “gestor de caso” estava definida como um objetivo nacional na Estratégia de Intervenção com Pessoas em Situação de Sem-Abrigo. “Já havia várias respostas de continuidade (alojamento), mas muitos utentes não aceitavam as regras, nem a estrutura. Tinham resistência em sair da rua”.

Percebeu-se que era preciso criar um elo. Faltava uma figura que estabelecesse uma relação de proximidade, servisse de ponte e pudesse criar um plano individual de integração. “Não é fácil sair da rua. Ao fim de quatro ou cinco anos nestas condições, o nosso sistema de defesas faz-nos acreditar que vivemos na rua por opção e isso enraíza-se”, explica o coordenador,  Fábio Simão.” Esta candidatura aos fundos da CCDR (Comissão de Coordenação de Desenvolvimento Regional) visou tapar este buraco que existia. Em termos de equipas, somos poucos. Um gestor de caso vai até ao máximo de quinze casos, mas se forem complexos diminui para dez.”

Unir para ajudar

A semente germinou quando surgiu o aviso da CDDR de que havia apoios disponíveis. Depressa surgiram ideias para a aposta na construção de equipas  de intervenção, inserção social e campanhas de sensibilização comunitárias. Numa primeira fase, pensou-se numa candidatura que integrasse os municípios onde já funcionam Núcleos de Intervenção para Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (Faro, Loulé, Portimão e Tavira), mas depressa se percebeu a potencialidade de algo mais abrangente e que envolvesse as várias  entidades que trabalhavam na área.

“Criámos uma mega candidatura para dar corpo a um projeto regional. Juntámos sete concelhos (Albufeira, Faro, Lagos, Loulé, Portimão, Tavira e Vila Real de Santo António) e cinco entidades ( MAPS, GATO – Grupo de Ajuda a Toxicodependente, CASA- Centro de Apoio aos Sem-Abrigo; GRATO – Grupo de Apoio aos Toxicodependentes e APF- Associação para o Planeamento da Família), explica o coordenador do projeto.”Esta parceria entre todos permite uma intervenção  regional, o que faz sentido quando trabalhamos com uma população-alvo flutuante, que circula entre os concelhos.”

Inicialmente a candidatura previa um investimento de 700 mil euros em dois anos, mas a CCDR acabou por aumentar a verba para 900 mil euros. “Conseguimos contratar dois técnicos por concelho, com exceção de Albufeira que optou por três técnicos e diminuiu as atividades”.

Algarve com a maior taxa de integração

Os números são uma dor de cabeça. A cidade de Faro é o exemplo. Oficialmente há cerca de 120 pessoas em situação de sem abrigo na capital algarvia. Fábio Simão acredita que a fórmula de contabilizar os casos precisa ser revista e que na realidade os números reais andam pela metade. Certo é que a capital de distrito, com as respostas de alojamento criadas, conseguiu a melhor taxa de integração do país, em 2021.” Ao longo do ano tivemos 26 frequências e dessas 14 a 16 são integrações. Pessoas que conseguiram trabalho e habitação”, refere.

É em Faro  que funciona o único centro de alojamento temporário do sul do país. Criado em 1996, através de um acordo com a Segurança Social, foram criadas 9 camas, mais uma residência protegida na área do VIH (Vírus da Imunodeficiência Humana), para 5 pessoas. “Recentemente criámos 5 projetos com capacidade para 10 pessoas por concelho. O de Loulé ficou parado, mas em Faro, Tavira, Lagos e Portimão já temos apartamentos partilhados. Estamos a abrir agora mais dois apartamentos dedicados à temática LGBTI (pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero e Intersexo) “

Esta  descriminação positiva foi decidida a pensar nos utentes mais  jovens, que saíram fragilizados do seio familiar e correriam riscos se fossem colocados em contacto com outros utentes com dependências problemáticas. ”Na prática, em cerca de um ano, o Algarve passou de 14 camas para 70 camas.”, diz Fábio com orgulho. O responsável pelo MAPS e coordenador do projeto Legos olha para a situação social e admite que o número de pessoas na rua possa aumentar. “Qualquer um de nós pode cair na situação de Pessoa Sem-Abrigo”, alerta.

Além das respostas  de acolhimento, o desafio passa cada vez mais pela integração na comunidade. “Tornar visíveis as pessoas que deambulam sem teto pela rua, fazer com que a sociedade não lhes vire a cara, lhes permita ir ao café, levá.las ao cinema ou a participar em iniciativas como uma simples peça de teatro são caminhos que ainda faltam fazer”, remata Fábio Simão.

O não desistir de quem caiu em situação de em-abrigo dá frutos. “Manuel” , o nome fictício de um dos utentes apoiado pelo Projeto Legos , depois de duas décadas na rua, voltou a reencontrar-se com a família: “Tem uma mãe velhinha e dois irmãos, no Norte. Não quis ficar lá, mas telefonam-se”.

O projeto Legos foi concebido para dois anos, mas poderá estender-se no tempo se conseguir novo financiamento.

CONHEÇA MAIS HISTÓRIAS COMO ESTA. SUBSCREVENDO OS NOSSOS DESTAQUES.