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Tal como pilotos da aviação, os profissionais de saúde do Algarve vão poder treinar procedimentos vezes sem conta sem que um erro possa ser fatal. O Centro de Simulação Clínica da Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas da Universidade do Algarve prepara-se para, a partir de setembro, abrir portas à formação contínua de equipas hospitalares com manequins eletrónicos capazes de ter sintomas e de reagir a tratamentos.

As amplas paredes laterais de vidro espelhado e as câmaras de vídeo de alta definição instaladas do teto dão a entender que os cerca de 30 metros quadrados pintados a branco serão, mais do que uma sala de emergência hospitalar, um teatro de operações escrutinado ao detalhe por muitos olhos e ouvidos. “Do outro lado deste vidro estarão observadores, enquanto, por detrás deste outro, um instrutor vai comandando o episódio clínico e introduzindo as variáveis a que a equipa na sala vai ter de ser capaz de dar resposta”, explica Guy Vieira, coordenador do Centro de Simulação Clínica que começa a ganhar forma na Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas da Universidade do Algarve.

Quando o novo ano letivo arrancar, em setembro, já o espaço estará equipado tal e qual uma unidade hospitalar, mas com uma diferença primordial que fará dele o foco das atenções: na maca, em vez de um paciente de carne e osso, estará um manequim dotado de múltiplos sensores de alta-fidelidade capazes de recriar as funções básicas do corpo humano. Será nele que se vai refletir a sintomatologia gerada por programas informáticos desenhados para recriar os casos clínicos que vão pôr à prova os profissionais de saúde da região.

“Vamos supor que estamos a simular um edema agudo do pulmão e que o instrutor decide gerar uma baixa significativa da oxigenação, que é um sintoma comum numa situação destas”, exemplifica o oncologista docente da faculdade. “Essa variação há de refletir-se no oxímetro dos monitores, a equipa há de aperceber-se e o chefe de equipa terá de adotar medidas em relação a isso, provavelmente ordenar administração de oxigénio. Estes simuladores são já de tal forma evoluídos que conseguem identificar o oxigénio administrado e em que quantidade e reagir de forma fisiológica, como o corpo humano reagiria”.

Futuros médicos já aprendem em simuladores

O recurso a simuladores não é novidade na Faculdade. Desde o seu lançamento, em 2009, o curso de Medicina encontra em manequins eletrónicos e não em cadáveres as ferramentas para implementar o seu modelo de ensino baseado na resolução de problemas (PBL – Problem Based Learning). “O Professor José da Ponte [fundador do curso] estava na vanguarda das práticas internacionais e sabia que era por aí que todos iríamos no futuro”, nota a diretora da faculdade, Isabel Palmeirim, recordando que, na altura, a abordagem teve o aval do então ministro da Ciência Mariano Gago, mas não foi consensual entre a classe.

Uma vantagem factual sustentou a aposta: a simulação “permite treinar procedimentos as vezes que forem necessárias até que sejam realizados na perfeição e isso não pode ser feito nem num paciente, nem num cadáver”, opções que não são suscetíveis de erro. Isabel Palmeirim compara a prática à aviação, na qual “o piloto é treinado através de um simulador de voo, que corresponde ao avião que irá pilotar”. Em ambos os casos, briefings anteriores e posteriores ao treino permitem relembrar processos, definir planos e recolher informações.

Bloco de partos e cuidados intensivos simulados

O primeiro lote de equipamentos de última geração a chegar ao Centro de Simulação Clínica inclui os simuladores que irão, não só apetrechar a sala de emergência, mas também as salas contíguas. Foram recriados um bloco de partos, uma urgência Obstetrícia, uma unidade de Cuidados Intensivos e um serviço de Imagiologia para pôr à prova tanto equipas multidisciplinares, como as competências específicas de médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde.

Para ilustrar as portas que este tipo de equipamento abre, Guy Vieira destaca a capacidade do simulador de Ecografia que, munido de óculos de realidade virtual, “permite ao formando ver em 3 dimensões tudo aquilo que está a ser feito”.

O projeto, financiado a 70 por cento pelo Programa Operacional CRESC Algarve 2020, implicou a adaptação do último piso da Faculdade de Medicina e de Ciências Biomédicas, criando também uma enfermaria, um consultório médico, uma sala de procedimentos e um anfiteatro. A aquisição dos simuladores absorve porém a maior parte dos quase 2 milhões de euros de investimento neste novo centro de treino de profissionais de saúde.

Treino com simuladores é crescente no mundo

A simulação médica como forma de treino é hoje uma tendência internacional. Nos Estados Unidos, por falta de cadáveres, mas também por se revelar um investimento mais vantajoso, os estudantes da Faculdade de Medicina de Las Vegas passaram a dissecar cadáveres virtuais em mesas que mais se assemelham a ecrãs interativos. E, no estado do Ohio, a Universidade de Case Western Reserve, em parceria com uma clínica privada, ergueu, em 2020, uma faculdade totalmente digitalizada, na qual as realidades virtual e mista são instrumentos de ensino de Anatomia e de procedimentos clínicos.

Portugal não tem ficado alheio a esta vaga de fundo. Praticamente todas as faculdades de Medicina contam já com equipamentos de simulação médica e as próprias unidades hospitalares recorrem a simuladores como os que a academia algarvia está a adquirir.

“Há estudos que indicam que o treino exaustivo de equipas multidisciplinares, em salas de emergência como esta, traduz-se na redução de custos em média na ordem dos 30 a 40 por cento”, justifica Guy Vieira, fazendo notar que uma equipa rotinada, na qual “cada um sabe exatamente que procedimentos adotar e quando e como os adotar, tem tendência a gastar muito menos material e a ser mais bem-sucedida”.

Centro quer ajudar a atrair profissionais ao Algarve

Foi, por isso, de olho na oportunidade que representa para a vasta oferta de Saúde pública e privada existente no Algarve, que o Centro de Simulação Médica foi desenhado para ir muito além das paredes da faculdade. Na verdade, é a formação pós-graduada a que mais beneficia do recurso a simuladores de alta-fidelidade, pelo que, frisa o responsável, “houve uma preocupação muito forte de tentar colmatar, desde logo, as áreas menos desenvolvidas ou implementadas na região”. Serão os casos da Imagiologia e da Obstetrícia, mas também dos Cuidados Intensivos, cuja sala ampla, com capacidade para 3 macas em simultâneo, “pensamos conseguir equipar a tempo de entrar em funcionamento já nesta primeira fase”.

O responsável do projeto está convicto de que o centro será um trunfo importante para a região, que “todos os verões é falada devido ao problema dos recursos humanos na Saúde”. Até porque, “ao melhorar a qualidade da formação contínua, o Algarve torna-se mais atrativo para os profissionais que até querem vir, mas não querem perder o momento da evolução da Medicina”, completa Isabel Palmeirim.

A faculdade acredita que o projeto será aliás aliciante para sociedades científicas que, por tradição, se reúnem na região. Os cursos específicos pré-congressos com recurso a simuladores estão em voga. Será o segundo passo breve da evolução do centro, que tem ainda nos planos requerer, a médio prazo, acreditação internacional para tirar partido das ligações aéreas do aeroporto vizinho.

Até lá, revela Guy Vieira, “a ideia é continuar a apetrechar o centro com novos e mais avançados simuladores”, mas também “vir a ser um centro de desenvolvimento desta tecnologia”. A ligação ao Parque de Ciência e Tecnologia Algarve Tech HUB que está a ser erguido no Campus da Penha, também co-financiado pelo Programa Operacional CRESC Algarve 2020, justifica o potencial. “Penso existir aqui oportunidade tanto para que empresas locais ou regionais, como para que grandes empresas internacionais de simulação se associem às nossas faculdades no desenvolvimento de protótipos ou software de simulação”.

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