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Com a linha de costa ali bem perto a convidar para mexer as pernas, a Santa Casa da Misericórdia de Albufeira está convencida de que a nova estrutura municipal vai rapidamente encher-se de séniores com vontade de se manterem autónomos, saudáveis e ligados à comunidade. O edifício, que mais parece um hotel, é só mais um condimento para que os futuros inquilinos possam envelhecer alegremente.

A vista sobre o litoral atiça ainda mais a vontade de abrir aqueles portões. “Estou já a imaginar as caminhadas que vão poder fazer de manhã até à beira-mar e só isso é, desde logo, uma ajuda para materializar a ideia de casa de portas abertas que pretendemos”, vai revelando a provedora da Santa Casa da Misericórdia de Albufeira.

Ali, a uns privilegiados 500 metros da Praia de Olhos d’Água, a nova Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (a nova designação que pretende reinventar o conceito de lar de idosos), praticamente concluída, confunde-se com os hotéis e aparthotéis que a circundam. Há bancos e mesas para aproveitar o bom tempo dominante, o interior privilegia a entrada de luz natural e até o desenho das varandas dos quartos convida a apreciar o contexto, que tantos turistas atrai a Albufeira. 

A própria configuração do alojamento assemelha-se à de uma unidade hoteleira. Conta com 12 quartos individuais, outros 21 duplos, todos com casa de banho privativa. Há ainda um quarto triplo, “que será dedicado a quem necessitar de maior apoio à autonomia”, mas é o caráter amplo das áreas comuns que merece o destaque de Patrícia Seromenho: “temos a sensação de que todos os caminhos fluem, dos quartos às salas de atividades, o que leva a que as pessoas não queiram ficar paradas”.

É caso para dizer que o ar de hotel e não de espaço fechado funciona como tónico “ao estilo de vida ativo” que a Santa Casa projeta para os futuros utentes. “Estou convencida de que quem decidir morar aqui, vai ganhar qualidade de vida, mantendo a autonomia e a ligação à comunidade”, nota, apontando o objetivo de, com este equipamento, mudar por completo o modelo de assistência ao envelhecimento em Albufeira.

Obra aguardada com expetativa

A obra era há muito aguardada no concelho. Esteve para ser lançada em 2007, mas, recorda o presidente da Câmara Municipal, “surgiu a crise, tivemos que parar tudo, e depois foi necessário adaptar o projeto à nova regulamentação”. 

Além da estrutura residencial para 57 pessoas, inclui agora Serviços de Apoio Domiciliário capazes de chegar a 40 utentes, Centro de Dia para acolher outros 33 e uma creche que vem oferecer 42 vagas às respostas à infância no concelho. Ao todo, o investimento da autarquia chega aos 5,2 milhões de euros, comparticipado em quase 1,5 milhões pelo FEDER afeto ao CRESC Algarve 2020.

Com os atrasos, incluindo a tramitação do concurso, veio a arrancar em maio de 2020, naquela que foi a primeira cerimónia pública do Município desde o início da pandemia. Não foi por acaso que mereceu tamanhas honras. O autarca José Carlos Rôlo recorda a “elevada expetativa” com que o equipamento era aguardado no concelho e justifica-a com a falta de resposta social ao envelhecimento existente. Sendo o concelho mais jovem do Algarve, “os esforços, nas últimas décadas de forte crescimento populacional, foram em boa medida canalizados para o ensino, deixando-nos altamente deficitários na terceira idade”. 

Embora Albufeira continue hoje a apresentar o menor índice de envelhecimento da região, a verdade é que o agravamento deste indicador foi galopante na última década – o número de idosos por cada 100 jovens disparou de 82 em 2011 para 131 nos Censos de 2021, um fenómeno a que o Município parece estar atento. “Sabemos que a ERPI de Olhos d’Água não vai chegar para as encomendas e temos por isso um conjunto de equipamentos que vamos lançar nos próximos anos, nomeadamente mais duas estruturas residenciais nas Fontainhas e nos Caliços e uma Unidade de Cuidados Continuados na Guia” refere o autarca, estimando vir a investir mais 10 milhões de euros em 5 anos.

Idosos já suplantam o número de jovens

A Santa Casa da Misericórdia não estranha a evolução social porque já sente os seus efeitos. Para as 60 vagas que dispõe o único lar que tem na cidade, há atualmente mais de 100 pedidos em espera. “Muitos dos que vieram morar para Albufeira em idade ativa estão agora a engrossar a faixa etária acima dos 65 anos e estou em crer que o peso relativo que têm na população idosa vai aumentar ainda mais nos próximos anos”, observa Patrícia Seromenho. 

À subdimensionada resposta (existem 3 estruturas residenciais no concelho) acresce o problema do formato. Para a provedora, “ter pessoas autónomas a conviver com utentes dependentes e debilitados desperta o medo de envelhecer e nós pretendemos exatamente o contrário”. 
A perspetiva de vir a gerir a nova estrutura residencial de Olhos d’Água é vista pela responsável da instituição como uma oportunidade de reformatar a oferta. A resposta especializada aos menos autónomos será concentrada no Roseiral, o lar que a Santa Casa dirige na zona histórica da cidade e em vias de ser remodelado, permitindo conceber em Olhos d’Água um modelo de envelhecimento ativo “que estimule a autonomia e a interatividade com a comunidade”.

Haverá uma horta para cuidar, ginásio para exercitar, produtos escolhidos a dedo para uma alimentação saudável e atividades ao gosto de cada um. “O que queremos é que as pessoas não fiquem acomodadas, nem sentadas, queremos que as pessoas se sintam envolvidas nas atividades e que partilhem os seus gostos connosco e com a comunidade, que chamaremos para participar”.

Oficina de autoconfiança

A lógica de “em vez de impor atividades, ouvir aqueles a quem elas se destinam para perceber os seus interesses e, a partir daí, desenvolver aquilo que estimula cada um” não é nova na Santa Casa da Misericórdia. É já quase um mantra para os técnicos que, a alguns quilómetros dali, põem em prática um dos projetos mais inovadores da instituição, a Oficina Ecológica de Cooperação Social ECOS com o apoio do FSE, onde pessoas como Odete redescobrem a autoconfiança através da arte, cultura e consciência ambiental. 

A empregada de balcão de 65 anos, desempregada há mais de dois, já no passado tinha ocupado os tempos livres a conceber peças decorativas, pelo que foi rápida a tornar-se num agente criativo da economia circular. “Cheguei aqui há cerca de um mês e comecei a aproveitar toalhas velhas que moldo com gesso para fazer castiçais como aqueles ou flores como aquela para queimar incensos”, mostra, com orgulho, nomeando aquelas que até já conseguiu vender.

Carlos, uma das pessoas sem-abrigo que visitam a oficina duas vezes por semana, está numa fase mais introspetiva do que criativa. Depois de “uns trabalhinhos de carpintaria” iniciais, passou a dedicar-se à leitura. Vive num alojamento da autarquia com outras 13 pessoas, pelo que “é fixe” encostar-se ali sozinho na pequena biblioteca a perder-se nos livros. “Já não tenho muitos horizontes, sabe?”, atira, em jeito de justificação, contando que a morte da mulher, em 2016, e a subsequente ruína do negócio o meteram numa “bola de neve até chegar ao zero”.

“Terá o seu tempo, o importante é que goste do que aqui faz”, responde prontamente Filipa Pereira, a coordenadora da oficina. Recebe um sorriso honesto em troca.

Criatividade para desbloquear a fragilidade

A informalidade desta interatividade que envolve já uma centena de utentes é, para a provedora da Santa Casa, “crucial para o processo de estímulo da criatividade” e consequente “desbloqueio da autoconfiança”. “Muitas vezes as pessoas estão no processo sem se aperceberem e, aos poucos, juntos, vamos construindo caminhos e criando competências que nos levam a acreditar em nós próprios”.

Não faltam ali ferramentas e monitores para o efeito: teares que reinventam tapetes com tecidos reutilizados, um atelier com máquinas que costuram pufes com retalhos, ou uma carpintaria que recupera e embeleza as centenas de móveis doados à oficina. 

Para o tal “despertar”, Ruben Guerreiro promove arte-terapia. Entre quatro paredes forradas com os trabalhos realizados, música, diálogo e meditação misturam-se com experimentação artística com os materiais que sobram das oficinas. O desafio, explica, “é levar as pessoas a falar através de uma obra, porque depois é mais fácil falar da obra do que de nós próprios”. Num contexto onde reina a “solidão e desapego social”, o objetivo último deste tipo de terapia é ”empoderar a pessoa, mostrar que afinal pode ter a sua palavra na sociedade”.

Mesmo em frente, recria-se uma T0. Tem sala e quarto para treino da gestão doméstica. Na casa de banho e na lavandaria, estruturam-se os hábitos de higiene. Já na cozinha, faz-se as duas coisas, mas também se pega na calculadora. É ali que se aprendem confecionar refeições saudáveis a custos reduzidos. As famílias sobre-endividadas fazem também parte do rol de respostas da ECOS, que dispõe de um gabinete de apoio financeiro personalizado para ajudar a gerir o orçamento.

Crise ucraniana pôs oficina à prova

A oficina entrou em atividade há cerca de um ano, como um dos maiores projetos de inovação social com financiamento do Fundo Social Europeu na zona Sul. Representa um investimento de quase 900 mil euros que teve o mérito de vir igualmente estruturar a capacidade da instituição receber e doar vestuário, móveis e eletrodomésticos a quem deles necessita. Por detrás das oficinas, um amplo armazém desafia mãos e braços à uma logística calibrada. De um lado, faz-se a triagem ao que chega e aloca consoante a qualidade e a tipologia. As oficinas reparam o que de arranjo precisar, antes de ser organizado nas prateleiras, que têm quase tudo o que uma casa precisa.

A crise migratória espoletada pela guerra que assolou a Ucrânia veio testar o sistema. Albufeira é um dos concelhos do país que mais refugiados acolheram. Até abril, eram já cerca de um milhar. Em Portugal há quase 20 anos, Ilona Bushlya divide-se, há coisa de um mês, entre organizar roupas por peças e tamanhos e a ajuda aos seus conterrâneos que fugiram dos bombardeamentos. “Há gente que tinha muito na Ucrânia e que chega aqui só com um saco na mão”, conta. 

O ritmo de dádivas de bens, a par da máquina oleada da ECOS têm permitido “responder aos que cá estão e aos que chegam”, mas o futuro é ainda uma incógnita. Depois do arranque “aos soluços” devido às restrições pandemia, o projeto entra na fase cruzeiro a pouco mais de um ano do fim. “Vamos tentar prolonga-lo até onde o orçamento permitir”, garante Patrícia Seromenho, acreditando que, até se esgotar o financiamento comunitário, o projeto vai ser capaz de encontrar formas de se autofinanciar daí para a frente.

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