Palácio Gama Lobo
algarve2020 || EM DESTAQUE || Set. 2022

Um solar que já foi casa de nobres, refugiados, doentes, tecidos e até de frutos secos, alberga hoje uma geração de artistas e designers disposta a perpetuar as artes ancestrais de Loulé em abordagens sustentáveis. A reabilitação do Palácio Gama Lobo é a história de um corpo moribundo ressuscitado por um coração que bombeia fluxos de criatividade

A exposição que se apresenta logo à entrada, mesmo que temporária, é um justo cartão-de-visita da energia que devolveu a vida ao palácio setecentista. A coleção mostra gavetas que ganharam pernas para servirem de pequenos jardins à altura de uma cadeira de rodas, ou até antigas pedras de escadaria transformadas em moinhos de especiarias. O que antes era lixo abandonado nos estaleiros da Inframoura deu origem a um conjunto de 94 equipamentos úteis a instituições de solidariedade social do concelho, graças ao engenho dos criativos do Loulé Design Lab.

A busca pelo eterno retorno do projeto “Infinity” (Infinito) bem podia ter sido inspirada na história de quase 260 anos do edifício que lhe dá palco. Tantas vezes esteve o majestoso Palácio Gama Lobo para morrer quantas aquelas em que ressuscitou. É hoje incubadora, oficina e residência temporária por onde passam diariamente dezenas de criativos e artesãos numa espécie de ponte entre o presente e o passado. Nasceu abraçado à Igreja de Sant’Ana como solar da nobreza rural, mas já foi armazém de tecidos e de frutos secos, refúgio de Jesuítas espanhóis, sanatório e até sede de associações desportivas.

Em 2014, quando o município decidiu, mais uma vez, trazê-lo à vida, não passava de uma “carcaça descarnada”. Dália Paulo, então chefe de Divisão de Cultura, estava longe de imaginar que o edifício, acabado de classificar como Monumento de Interesse Municipal, viria, não só a resgatar a dignidade de outros tempos, como a ganhar um papel central na revitalização cultural da cidade. “Queríamos devolver o palácio à fruição pública, mas numa lógica que, não só o reabilitasse, como lhe desse um pulsar diário”, recorda.

O Loulé Criativo era, por essa altura, o embrião de “um conceito de desenvolvimento territorial, sem espaços nem oficinas”. A ideia, que nascera na divisão que chefiava, era a de valorizar a identidade local, aliando o conhecimento ancestral à inovação. Era preciso meter, lado a lado, artesãos, artistas e designers. A perspetiva do novo espaço era uma oportunidade e, assim, estava encontrado o novo coração do palácio.

Reabilitação fiel às marcas do tempo

O transplante precisou de tempo. Enquanto o Loulé Criativo dava os primeiros passos, constituindo as primeiras oficinas na cidade, um arquiteto do Município de Loulé respondia ao desafio caseiro, lançado pelo presidente Vítor Aleixo, de levar ao papel o plano da cirurgia. Sentado sob os ornamentos florais que decoram os tetos do salão nobre, Luís Guerreiro recorda como assumiu o compromisso de “revelar a identidade sedimentar” daquele “corpo em avançado estado de degradação” e “adequa-la às funções que se pretendia”. Mas, que identidade tem um edifício que foi um pouco de tudo? “É essa exatamente a identidade, um corpo que cresceu captando uma série de expressões”.

Os tais ornamentos ao estilo Rococó, num edifício de arquitetura Barroca, são exemplo dessa transformação gradual. Integraram a intervenção feita já no séc. XIX, quase um século depois da família Gama Lobo ter visto a obra que iniciara em 1763 embargada por violar os regulamentos de edificação pombalinos. Luís Guerreiro quis preserva-los, tal como o colorido mosaico hidráulico introduzido já no século XX. Até as rachas deixadas pelo tempo nesse chão lá estão. Bem como janelas, portas e corrimões originais. É uma forma de “sentir a presença dos últimos usos”, explica.

A abordagem não intrusiva conheceu exceções terapêuticas. Um segundo piso no pátio, que se acredita ter sido erguido quando ali funcionava o sanatório, foi demolido “para devolver a escala ao corpo primitivo”. Quanto ao que não era recuperável ou que não existia, o autor, ao invés de recorrer à linguagem da época, preferiu “acrescentar mais uma camada, de contemporaneidade”, como foi o caso do elevador panorâmico em vidro e aço corten que se destaca no pátio interior.

Fundos europeus ajudaram a devolver a vida

Do papel à prática, a obra arranca em 2016, mediante o investimento municipal de 1,3 milhões de euros, co-financiados pelos fundos comunitários do CRESC Algarve 2020. A 1 de junho de 2019, a Rua de Nossa Senhora de Fátima via reabrir as portas do palácio. Os 1557 metros quadrados do espaço eram agora casa do Loulé Criativo.

No primeiro piso, a poente, os antigos quartos do seminário dos Jesuítas espanhóis fornecem 17 camas, cozinha e lavandaria por onde passam artistas de todo o mundo. O Espaço de Conhecimento, Ofícios e Artes (ECOA) promove aqui residências artísticas, oficinas, formação e exposições.

Na outra ala, a nascente, o Loulé Design Lab alavanca a atividade de 19 designers dispostos a incorporar criatividade e sustentabilidade às artes ancestrais. A incubadora alberga já a terceira fornada de criativos. “Já passaram por aqui 47, quer a tempo parcial, quer em permanência, por períodos que podem chegar aos 2 anos”, explica Joana Dias. A produtora executiva vai elencando a diversidade de iniciativas de mentoria de que beneficiam os incubados: “conversas temáticas uma vez por mês, sobre produtos, técnicas ou novas abordagens, apoio a projetos de colocação de produtos e interação entre os mais novos e os mais velhos porque queremos ser um pólo onde nascem novos artesãos”.

Onde a tradição encontra a inovação

As artérias do novo coração do palácio estendem-se para lá das paredes seculares. Nas ruas do centro histórico, a rede de oficinas mantém vivas as artes artesanais mais marcantes do concelho. À empreita de palma, a caldeiraria e a olaria, juntaram-se também oficinas de relojoaria, de instrumentos musicais de cordas e de tecelagem. “O espaço permite criar relação entre todos, quebrando preconceitos entre artistas e artesãos, com projetos criativos a várias mãos em relações improváveis”, nota Dália Paulo.

Numa oficina do piso térreo, sob as abóbadas que o arquiteto fez questão de preservar nas antigas cavalariças, Margarida Valente está de roda do desperdício de malha que afofa o revestimento da cadeira sugestivamente batizada “Fui ver as estrelas e já volto”. A artista de Lisboa está a cumprir uma residência de 4 meses em Loulé e a peça é já produto da experiência algarvia. Foi concebida sobre uma estrutura metálica que adquiriu a um serralheiro de Almancil. “Estive 30 anos ligada a uma galeria, pelo que, agora, vivo alguma liberdade profissional e conto encontrar aqui novos materiais para trabalhar”, conta.

Não lhe faltam ali recursos. A sala polivalente oferece maquinaria para trabalhar bijuteria, tecidos e cerâmica. Ou ainda, ao lado, uma carpintaria recebe visitas regulares de um mestre carpinteiro disposto a ajudar. “Temos instalações e oferecemos mentoria na área para que possam desenvolver o negócio criativo, tal como outros antes deles já o fizeram”.

Dália Paulo, hoje diretora municipal, olha para “os fluxos que este território livre cria” e elogia “papel estruturante” desempenhado pelo arquiteto: “não havia caderno de encargos definido, tudo foi resultado de extensos diálogos e, no entanto, temos a sensação de que tudo é harmonioso, que artistas e artesãos trabalham interligados, que um espaço onde laboram oficinas transmite paz”. Ressuscitar assim um palácio, diz, “merecia um prémio nacional de reabilitação urbana”.

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